segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Insana realidade

I

Sempre havia suspeitado que a loucura - ou doença mental, para aqueles politicamente corretos, como ela - fosse genética. Se não o fosse, talvez  soasse como um bom argumento para justificar a sua. O pai e a mãe o eram.

II

Marta. M de mamão, m de mochila, m de merda, m de melancia, m de morcego, m de mel, m de melatonina. Aquilo que nos faz dormir. Marta. A de amor, a de aranha, a de árvore, a de abismo, a de anão. Lembra daquela minha colega anã? Coitada! Tanto preconceito sofria. Marta. R de rato, r de Rapunzel, jogue suas tranças... Por que cortaste o cabelo? Gostava mais dele louro e comprido. Marta. T. T de tatu, T de tofu, nossa odeio isso, t de telefone. Meus Deus! meu Deus! Ele nunca mais telefonou. Que dor! Quanta desgraça. Meu sofrimento... Marta. Ah! Outro A, que sem graça.

III

Como explicar que não agüentava mais? Como fazer uma pessoa normal entender que a vida glamourosa de artista nunca havia estado em seus planos? Como explicar que gostava dos palcos dos pobres teatros de arena e odiava a televisão e sua falsidade?

IV

Remédio para emagrecer. Afinal, só poderia ter perdido o amor de sua vida pois estava gorda. Gorda com G de gato, g de Gustavo, g de guloseimas, g de gorda.
Depressão com uma médica incapaz de sentir. Depressão com medição errada. Surto psicótico. Os filhos olhavam atentos aos sintomas manifestos na mãe.
Não. Não era possível que, após tantos anos, vissem na mãe aquilo que haviam conhecido no pai.

V

Ela queria voltar a sair nas ruas. Odiava a maquiagem e as constantes intervenções cirúrgicas as quais era submetida para manter-se bem no vídeo. Nunca quis ser artista de TV. apenas uma participação especial. Apenas uma novela. Apenas mais um seriado. Apenas uma nova novela como protagonista. Não entendia o porquê mas sua aversão ao luz, som, claquete, ação, sua aversão era proporcional ao sucesso que fazia.
Todos queriam ela. Diretores, roteiristas, telespectadores.
Um dia ouviu que justo por não desejar merecia o sucesso.

VI

Quando, há uma década, o pai teve seu surto esquizofrênico demoraram a entender. Ela e o irmão mais velho observavam aquilo impactados pela súbita religiosidade do pai. Depois, pela virilidade com que ele se referia a todos as mulheres. Depois passou a ver Maria, a mãe de Jesus, depois passou a tentar transar com todas. Inclusive com Maria. Depois foi internado. Depois foram meses com a boca e aos mãos trêmulas. Depois o olhar taciturno. Depois a indiferença provocada pela culpa.

VI

Então, tudo bem que surto ocasionado por medicação não nutre nenhuma relação com esquizofrenia. Tudo bem que não era genético. Tudo bem que ambos, o pai e mãe, viviam felizes com suas histórias passadas. Tudo bem que doença mental era como qualquer diabates ou problema cardíaco: um comprimido e tudo bem.
Então, tudo bem.
Nada disso fazia com que ela tirasse da cabeça a idéia de desistir da TV, de voltar aos teatros (alguns velhos e mal cuidados). Nada disso tirava dela a obsessão por poder ser ela mesma quando deixasse o palco. Ah! Esse era o mal das Novelas. Nas ruas, aos olhos atentos a acompanha-la, seguia sendo seus personagens. Onde já se viu a mocinha do século passado empinar uma garrafa de cerveja, com um cigarro na mão? Não. Ela não queria empinar uma garrafa de cerveja nem acender um cigarro.
Ela queria apenas sua vida de volta. E a teria. Mesmo que para isso fosse preciso ir tão longe quanto o pai e a mãe  foram.
afinal, tudo bem. Eles conseguiram chegar onde queriam.

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